03/10/11

Janeiro de 1974. Um regresso forçado. ...continuação

Retomei a minha actividade profissional, perante o espanto dos meus camaradas.
Não entendiam, como era possível o que me estava acontecer, nem eles nem os meus companheiros dos bombeiros.

O meu patrão – figura publica cá da santa terra -, também ele espantado, prometeu uma ajuda junto de um “Chico” qualquer que conhecia, mas… ficou por isso, mesmo não obstante a sua surpresa pelo inédito da situação.
Tínhamos tido uma conversa, e como eu estava na fase adulta ele prometeu-me uma mudança de serviço, ou seja iria aprender a arte de relojoeiro, agora não como atalho para a mesma. Só que lá estava o problema: ia de novo para Angola… mais um compasso de espera, na minha vida profissional, que nunca chegou a ser dado, pelo simples facto da história de Portugal ter mudado a 25 de Abril de 1974, mas isso é outra vida, e que já tinha sido interrompida em 1971, quando assentei praça.

No dia marcado, umas breves despedidas de amigo e familiares, sem dramatismo nem carga sentimental, apenas um turbilhão de pontos de interrogação. Se não estou em erro o embarque estava marcado para as 23 horas.
Cheguei cedo aos adidos, de mala quase vazia, apenas uns calções de banho, umas calças duas camisas em mais um par de sapatos, á e civil. Deram-me uma farda, e mandaram-me embora já que o meu embarque tinha sido adiado para a semana seguinte.
Furioso, reclamei e pedi a guia de marcha, mas nada. Paguei a deslocação, mais uma vez. Não compreendia nada.
Na nova data, causei um reboliço dos raios. Desta vez tinha embarque, era garantido e a prova disso e que para meu espanto, a funcionária saca de um monte de notas de mil escudos e começa a contar para cima da madeira que servia de mesa no guiché Os meus olhos iam se abrindo, nem queria acreditar no total tinha ali a minha disposição se não estou em erro dez mil escudo. Ainda mal refeito da surpresa – nunca tinha tido tanto dinheiro na minha mão, e melhor ainda; meu. Encontrei um camarada da CCS, que me reconheceu, ele também ia de novo, pois tinha sido evacuado por doença. Coisas.

Como o meu camarada França me tinha entregado o crachá da companhia, fui ao Porto e comprei quatro barras -  tipo sargento -, e pedia a minha Mãe para mas cozer no blusão do lado esquerdo. Ora com dois crachás ao peito, o do batalhão, e, o da companhia, mais as quatro barras douradas, na boina, nada de arma nem no colarinho do blusão, sem bilhete de identidade militar, e apenas com um grande envelope, lá rumei ao aeroporto. O meu camarada da CSS ria-se como um doido, com a explicação que lhe dei, e como já tínhamos jantado e bebido uns copos, estávamos como se diz agora - numa boa. Na gare de embarque estava uma companhia para embarcar, e é claro aquelas cenas, de choro, e nós para ali a rirmo-nos e a gozar com tudo. É claro que a nossa, atitude despertou a atenção dos nossos “amigos” da polícia militar, que se nos dirigiram, com aqueles bons ares que todos conhecemos deles.

Indagou o miliciano para onde íamos. Angola. Foi a resposta a dois. Alguns dos “maçaricos” foram-se aproximando curiosos, com a nossa descontracção nas respostas que íamos dando.
O homem pediu-me a identificação, e perguntou-me o que era aquilo no ombro. Respondi-lhe que cada uma das quatro barras significava um período de seis meses de comissão comprida.

O tipo primeiro ficou mudo, depois mandou retirá-las. Obviamente que estava a falar para o tecto já que não tinha intenção de lhe obedecer. Ir preso com ele era melhor do que voltar a Angola, por isso. .. mas pior ficou quando lhe disse que não tinha cartão de identidade militar nem civil e mostrei-lhe o envelope.  Pergunta para aqui, resposta para ali, fomos entretanto chamados para embarcar. Resultado lá fui eu. Ele ficou para ali a falar sozinho.
Depois de acomodado no meu lugar entre dois forreis milicianos lá levantamos voou. Desta vez sim ai mesmo, até Angola, com o bolso quente, de barriga cheia da “tanga” dada a P.M. e bem animado com a visão deslumbrante das “hospedeiras” dos TAM.
Como a viagem ia durar umas horas e o sono não pegava, perguntei a um dos milicianos para que zonas iam.
O infeliz respondeu, e eu com uma grande lata, pintei uma cena dos diabos. Afinal eu era uma “autoridade “ na matéria – já lhe tinha contado tudo sobre a minha vida militar. Lá cruzamos os céus, tendo chegado a Angola com os primeiros raios do dia. Despedi-me dos meus infortúnios camaradas de viagem, com a garantia de que os iria visitar ao Grafanil.

Eu rumei à CMR 113, uma companhia independente estacionada no R.I 20 de Luanda. Aguardavam-me aqui bons e péssimos momentos.
Logo à chegada encontrei o Canha camarada da minha companhia que se encontrava a completar o tempo de serviço pois tinha ido mais tarde, um escriturário da CCS, nas mesmas circunstâncias. Ficaram admirados de me verem por ali especialmente o Canha, que me conhecia bem. De tarde fomos para as Cucas, pois claro, os escudos do puto haviam de servir para alguma coisa, e pensei para com os meus botões aproveita agora enquanto estás em Luanda, eu não sabia o que me esperava, poderia ser colocado numa qualquer companhia num canto qualquer desta imensa terra.
Mas não.
Os primeiros dias decorreram na normalidade, comer e dormir, umas idas ao cinema e Cucas para baixo que o calor apertava.
Mas estes dias não iriam ser rosas, o caminho a percorrer era sóbrio.
A minha primeira tentativa para saber o que esta a acontecer, foi junto de um primeiro-sargento.
Pedi se me podia ajudar, e a resposta não podia ser mais seca. Não. Que procura-se junto do serviço de justiça, de saúde, eu sei lá de quantas mais entidades. Agradeci humildemente mas de punho cerrado. Se o tipo tinha acordado mal disposto eu não tinha culpa.

Pus os pés ao caminho. Perguntei onde era o serviço de justiça, e abre que se faz tarde.
Fui recebido por um Major, que me ouviu, com atenção, mandou-me passar lá dois dias depois, que me daria toda a informação.
Dois dias depois, com o coração a bater, entrei na secção de justiça, até as pernas tremiam, o que iria ouvir?? Eram tantas as perguntas a bater, que fique pálido.
O major perguntou se me sentia bem. Respondi que sim, mas que estava nervoso e apreensivo.
Com muita calma lá me foi explicando, que não existia nada, por parte do seu departamento, e que pedisse ao sargento da minha companhia, para pedir por mensagem essa informação.
Eu não, cabia em mim de satisfeito. Afinal poderia ver-me livre desta “guerra” rapidamente.
Quando cheguei à CMR 113, transmiti ao sargento, o que me tinha dito o Major.
O homem de facto não andava bem, sei lá porque, pois a resposta foi: tinha mais do que fazer do que andar a mandar mensagem a correr. Ainda lhe fiz ver a minha situação, quase que lhe rezava um terço… mas nada.
Perante a sua resposta, e de cabeça perdida dei-lhe como resposta: se era assim que ele queria eu iria tratar do assunto.
Apanhei um táxi à porta de armas do R.I.20 e rumei ao serviço de justiça. O impedido do Major disse-me que ele não me recebia naquele dia. Qual não recebe, levantei a voz é claro que o ruído chegou ao gabinete e o próprio veio indagar o que se passava.

Eu estava em autêntico estado de choque. Lá fomos para o gabinete tendo eu explicado o que me tinha dito o sargento.
Bonito. Já não fui de táxi para a minha unidade, O major mandou chamar um jipp e mandou-me lá levar. Entregou ao condutor um envelope.
Estava eu deitado, a tentar repor as ideias, quando o escriturário de CCS do meu batalhão me veio chamar, com cara de atrapalhado disse-me
- Estas feitas pá. O capitão está furioso, o sargento foi-se lá queixar, que tinhas andado a mandar bocas ao major dos serviços de justiça.

Enfrentar esta raça para mim era “tinto” queria lá saber deles para alguma coisa.
Entrei, bati a continência, e aguardei, o sermão.
O tipo tinha o meu processo á sua frente.
Atirou logo.
- isto não é a 3440, quem me julgava eu, e que estava habituado a “reguilas” como eu. E por aí fora.
Eu só respondi:
- Sabe meu capitão eu só fiz o que o nossa sargento me mandou. Desenrascar, que o problema era meu. Contei-lhe o que se tinha passado.
É claro que esta gente escudavam-se uns aos outros, e foi bonito o que se seguiu.
O capitão conforme foi lendo o meu percurso militar, olhava para mim e repetia que não estava na 3440, ao que respondi:
- De facto não estou. É que se assim fosse talvez as coisas fossem diferentes.
Do muito que foi dizendo - a para a o qual me estava a borrifar -, pois já sabia a cantilena a de cor, de tantas vezes ter ouvido o meu discurso, uma das frases que pronunciou fez-me subir e descer aos infernos. O tipo disse-me que seu eu não tinha tido um Pai que me desse educação que me a dava ele.
O que havia de dizer.
- A minha resposta foi pronta:
- O meu Pai não é para aqui chamado, e se o meu capitão, evoca – o de novo, perco-lhe todo o respeito.
O tipo não era burro, e já tinha lido tudo sobre mim, percebeu por certo – digo eu -, que tinha ido longe demais, e depois de mais alguns “recados” mandou-me retirar.

A CMR 113 era uma companhia, como disse que se encontrava anexa ao Regimento de Infantaria 20 de Luanda, onde era normal se encontrar pessoal em fim de comissão ou a aguardar embarque por qualquer razão.
Dito isto: quer dizer que eram tudo “velhinhos”. Malta com à-vontade, habituada à vida militar, e o ambiente na companhia reflectia isso mesmo.
Depois das 17, horas o capitão e o restante pessoal graduado á excepção do sargento dia, iam embora. A formatura para o jantar, era um espectáculo para os elementos do R.I.20 na sua esmagadora maioria negros.
Íamos de sapatilhas a fazer de chinelos, calções sem boina . . . eu sei lá uma “farra”.
Um dia, já a caminho do refeitório, eis, que o raio do capitão, regressa à companhia, e depara-se com aquela cena.
Foi o fim.
Manda tudo para traz, formar, perfilara pela direita, abrir fileiras, queda facial em frente … e toca de encher pneus.
O pessoal nem queria acreditar. Depois de umas quantas flexões, mandou regressar à primeira forma, e desenrolou um sermão, daqueles e peras.
Retirou-se, e ainda não estava-mos refeitos já se ia ele embora.
Acontece que o Furriel miliciano estava com embarque já marcado, e nunca soube como passou a palavra, para o pessoal não jantar.
Assim foi, quando no refeitório mandou sentar e comer, ficou tudo de pé. Falta acrescentar, que comíamos no refeitório do RI20, mas à parte, e tínhamos também os nossos cozinheiros, não sendo o rancho igual.

Estávamos contudo sujeitos às regras da unidade, e como não comesse-mos o furriel foi chamar o oficial de dia. O Alferes perguntou porque não comíamos, mando umas bocas, e não esteve para se chateado. Mandou chamar o comandante de unidade.
Quando este chegou mais de uma hora depois, começou por perguntar aos que se encontravam no topo das mesas porque não comiam, conforme a resposta, uns saiam outros ficavam. Para meu azar também fui indagado porque não comia. Disse-lhe que já não tinha fome. A reposta foi pronta: rua.
Resultado nessa noite não podemos sair e sem jantar, as coisas azedaram, e foi combinado não proceder ao reforço ao parque auto, nem que se tomaria o pequeno-almoço, uma vez que só nos davam um quarto de pão, quando era obrigatório darem meio casqueiro.
A CMR 113, tinha como missão, fazer o reforço à Manutenção Militar na estrada de Catete. Como não tomava-mos o pequeno-almoço as foram passando, pois desta vez as coisas complicaram-se bastante, já que tínhamos a presença do comandante de unidade e o “nosso” capitão.
Resultado, a rendição não se fez às horas que deveriam ter sido feitas.
A tropa, do RI20 olhava para a situação, atónicos.
Depressa se espalho a notícia, pelas unidades circunvizinhas.
Tudo parecia ter saído bem, pois ouve reunião da companhia onde foi dito ao capitão, que lele nos tinha humilhado em frente da tropa negra.
Mas… para mim as coisa ainda não tinham terminado.
Ao meio da tarde fui chamado de novo ao posto de comando da companhia.
Desta vez estava o comandante, um sargento e um capitão mais idoso.
O comandante começou por me lembrar os acontecimentos que já relatei, e iniciou um rol de ameaças, já que do meu curriculum militar constava um que tinha sido cabecilha de um levantamento de rancho e punido com 20 dias de prisão disciplinar agravada.
Só lhe respondi.
- Mas o meu capitão pensa que eu ia armara aqui alguma confusão?eu estou aqui nem sei porque razão, e quero e ver-me livre da tropa.
Olhou para mim e deixou no ar a ameaça de que se descobriu-se que eu tinha alguma coisa a ver com os levantamentos de rancho me f… . Fiquei admirado com os termos pouco militares e chamei à atenção, de que eu era um homem, militar e que não podia ser assim tratado. Foi o fim da picada. O tipo ainda ameaçou mais, e eu, lembrei-lhe que me podia queixar dele, pois tinha como testemunhas o sargento e o capitão. Bem quase que me metia num colete de sete varas, tal foi a fúria que o invadiu, e valeu-me a serenidade do capitão mais velho que pôs água na ferveu, tendo as coisas ficado por aqui.

As coisas ficaram por aqui, por dias.
Quando cheguei a CMR 113, tive de pagar a limpeza da roupa de cama, e mais uns escudos para a barbearia. Não fiquei muito convencido, mas pensei; ainda agora cá chegaste e já vais armar ratulho? Fique-me nas “covas”.
Agora quando fui receber o pré e vi de novo os mesmos descontos para o mês que estava a decorre, não me calei, e perguntei ao sargento, porque tinha de pagar semelhantes custos?
O tipo não esteve com meias medidas e perguntou-me se queria ou não receber, perante a a minha insistência, retirou o dinheiro da minha frente e disse : a seguir.
O camarada, que me segui, depois de ouvir os meus argumentos também reclamou, mas lá acabou por aceitar.
Decorridos alguns dias dirigi-me ao capitão a dizer que não podia escrever para casa, já que não tinha aerogramas nem dinheiro para selos, uma vez que não tinha recebido o pré.
O tipo mandou chamar o responsável pelos pagamentos e perguntou porque não tinha eu recebido o pré.
Mais uma bronca: O sargento disse que eu tinha reclamado dos descontos já mencionados.
O capitão, já não olhava para mim. Ficou assanhado e disse que ali era assim e pronto. Disse-lhe que não entendia. O pagamento para a limpeza dos lençóis, ainda vá, agora para a barbearia, não. Disse que tinham comprado material e que alguém tinha de o pagar.
Coisas da tropa. Eu até nem gostava de cortar o cabelo, mas enfim.

Durante X de dias foi uma vida sem nada fazer.
Vinha à cidade, almoçava, via um filme, dava uma volta pela marginal, sofria os assédios dos muitos homossexuais, que tinham faro para tudo que era militar. Regressava á unidade.

A 22 de Abril, leio com espanto uma ordem de serviço onde se informava que o processo disciplinar que me tinha sido instaurado aquando do levant5amento de rancho na 3440 tinha sido arquivado, e lá estava a data.
Estava portanto o caminho desimpedido para o meu regresso que me foi comunicado no dia seguinte, e marcada a viagem de regresso para o dia 23 de Abril de 1974.
Quando me apresentei na secretaria para receber o meu pré, perguntei ao sargento responsável pela manutenção, quanto ainda faltava para o integral pagamento, dos utensílios que a companhia tinha comprado para a barbearia, pois estava na disposição de os pagar.
Foi de rir, ver o embaraço do homem, o que me leva ainda hoje a pensar, que tudo não passava de uma forma habilidosa de sacarem uns quantos escudos aos militares. Era assim que muitos depois compravam na terrinha casa, carro e por ai fora.
Regressei, e no dia 24 de Abril dá-se a revolução. Tanto o capitão, como os sargentos andaram com uma sorte dos raios, pois se eu estava em Angola nessa data, não sei o que lhes teria acontecido, não.








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